Me pergunto por que preciso dele. Para me revelar, para ser eu mesma? Para me exprimir, conseguindo assim uma fusão, um grau de intimidade que necessito para me sentir realizada? Por que necessito da fusão com outro ser para me realizar? Porque me sinto sozinha, me falta um pedaço, falta uma parte minha que ficou perdida em algum lugar da minha infância e da qual tenho nostalgia. Sinto necessidade de parte de mim, a que não adquiriu consistência, e é essa parte que o outro representa. Preciso conquistar o outro, convencê-lo a fazer parte de mim_ ele significa admiraçao, troca, intimidade, carinho, sensualidade, partilha, companhia. O outro sou eu. É a metade de mim que falta. Ele é doce, envolvente, caloroso, macio , aconchegante. Eu preciso do abraço do outro para ficar feliz. Um abraço apertado, quente, gostoso.
Qual o pedaço que me falta? O que me faltou na infância? Faltou quem me visse, quem me olhasse nos olhos, me tocasse e me dissesse que eu era boa, querida, linda. Me faltou quem me amasse. Meus pais não me amaram. Eles não cuidaram de minhas necessidades de afeto. Um dia, criança bem pequena, vi minha mãe lá, mal arrumada, chorando. A humilhaçào daquela cena de cobrança e desapontamento que ela fazia diante do meu pai, entre atônito e impotente, se cristalizou em mim de tal forma que quis me refazer para nunca ser humilhada daquela maneira. Ser humilhada significava para mim ser relegada, esquecida, preterida. Ainda hoje me humilha o fato de me ignorarem. A maneira descuidada como ele me trata me desvaloriza. No entanto, saio em busca de viver essa situação e cada pequeno gesto de afeto é uma pequena vitória.
A menininha chorona recebe atenção quando se mostra sensível, inteligente, bonita. Então essa pequena vai à arena enfrentar seus leões, munida de suas melhores roupas e intenções. Ela se coloca diante da rival que não lhe chega aos pés. O olhar dele a deixa feliz e a alimenta, assim como a desatenção dele pela rival. Placar: 0 x 0, 1 x 0, 2 x 0 para mim... fico feliz. Se acontece de haver o inverso e a atenção dele se voltar pra ela, se for 1 x 0 pra ela, dou birra, ameaço ir embora pra sempre, terminar tudo. A menininha não pode suportar falta de atenção...
Um dia deixei de competir com minha rival. Por que? Porque estava fácil demais ou porque me feria o fato de que, apesar dos olhos dele estarem sempre voltados pra mim, eu senti que assim era porque ela, a rival, consentia? Ela saia de cena para que eu brilhasse, estrela cintilante. Ela talvez não precisasse competir, talvez estivesse muito segura do amor e necessidade dele. Me incomodava o fato de conversarem longamente, se telefonarem, se tratarem cordialmente. Não, ela não o merecia. Eu era melhor: mais bonita, inteligente, culta, mais rica e mais companheira, mais sexy. No entanto ela o possuía, não eu. Era desgastante ser a boa e bela amante todos os dias e, assim que acabasse a cena, as luzes se apagassem, eu deixasse de existir e ele voltasse pra ela. Voltasse pra casa.
Entende?
Era preciso ser melhor, competir, ganhar da concorrente. Daí ela sairia de cena, rabinho entre as pernas, e eu ganharia o prêmio.
Mas não aconteceu assim.
Tive um excelente desempenho, mas ele sempre me deixava ao final, correndo pra ela. Dizia que me adorava, mas corria pra ela. Eu era a melhor, mais tudo de tudo, mas corria pra ela.
Ele alimentava meu ego por algum tempo e depois me relegava ao esquecimento. Assim alimentou minha dependência. Eu queria mais e mais daqueles holofotes fixos em mim, nunca ninguém antes me olhara assim... e quando eu pensava que já tinha tudo, que ele me olharia para sempre, ele sumia, apagando as luzes do palco.
Era desesperador não ter platéia! Quem estaria interessado na minha representação mais verdadeira? Quem me amaria o bastante a ponto de querer ver-me reprensentar a mim mesma, com todas as minhas carências, lágrimas, ciúmes, estratagemas infantis? Veja, só houve alguém que viu essa peça, por isso desejo que ele não saia jamais da platéia... necessito que me aplauda... que me parabenize... que me ame.
Viver passou a ser representar só pra ele. Virou um vício, uma necessidade e a cada vez que ele se ausentava eu parava de viver um pouco.
Me pergunto por que ele precisa de mim... Para ser ele mesmo? Para descansar da máscara por algum tempo, relaxando assim seus músculos distendidos, as atitudes distendidas, os pensamentos distendidos...
Assim como ele me olhou e me viu por trás da minha máscara de eficiência, assim também eu o olhei e o ví por trás da sua, de escrúpulos falsos. Éramos duas fraudes _ eu, a menininha solitária precisando de atenção, carinho e cuidados. Ele era o menino indócil a a quem tentaram moldar à força. Ambos nos rebelávamos fingindo-nos de adultos. Mas eu ainda dava birra e ele expunha sua exigência nada cristã. Eu queria, precisava ser dominada, pertencer a alguém. Ele precisava usar, abusar, possuir e dominar para existir.
Foi uma simbiose à qual chamei amor. Foi um fogo. Eu me vestia de forte e auto suficiente. Ele se vestia de fraco e dependente. No fim eu não era forte, nem ele dependente. Tentávamos não submergir, não nos afogarmos de vez nos nossos papéis quando nos conhecemos. Nos agarramos um ao outro como se fossemos táboas de salvação. Viciamos um no outro. Viciamos na companhia, no sexo, nos defeitos mais graves.
Ele era basicamente desenfreado. Eu, basicamente aventureira. Juntos transgredimos muitas regras, fomos mais que cúmplices, mais que loucos. Usufruimos de todos os espaços.
Mas acontece que ele só foi meu em um dos roteiros. Quando colocava a máscara eu deixava de existir. E nessas horas eu morria. Me desesperava. Ele corria pra casa, pra minha adversária com toda naturalidade. Me beijava e dizia até breve.
E para parar de morrer eu morri pra ele. Renunciei. E para não me desesperar mais eu me anestesiei. E coloquei um ponto final na história que contei.
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