quinta-feira, 30 de outubro de 2008

EUROPA PARA PRINCIPIANTES: MODO DE USAR - VIDE BULA

Paris... Ah, Paris...

Se a Torre Eiffel me deixou muda de emoção, enquanto eu olhava para o alto, encantada, os negros senegaleses de camisas floridas, que vendiam souvenirs bem barato se escondendo da polícia, me deram muito medo... e sustos. O lixo espalhado nos gramados deixaram minha pose turística aos frangalhos... a multidão que se espremia nas filas, o calor inclemente, o preço do sorvete de chocolate e o brusquidão dos vendedores oficiais causaram um estrago tão grande, que as únicas lembranças reais foram as fotos tiradas às pressas, onde consta que tudo está bem. Tudo parece lindo e chique, com um toque sofisticado que Paris sempre causa nos desavisados sonhadores como eu.

Os Champs Ellisees e suas lojas sofisticadas reluziam, coroados pelo Arco do Triunfo. Nada mais belo, mais caro, nem mais inviável. Um dedo de café em uma xícara e um brioche murcho saboreados sob o toldo azul na calçada... uma compra em saldos... um passeio de um dia todo em um ônibus turístico vermelho... Isso é Paris para os incautos... E talvez seja uma das cidades mais belas e acolhedoras que se possa desejar.

O sonho de conhecer Montmartre culminou por um caminhar em uma avenida superlotada e imunda, coroada pela Catedral de Sacre Couer, onde turistas animados cantavam e dançavam ao som de “La Bamba”, que um grupo musical amador esparramava pelos degraus da igreja... Entrar na catedral e caminhar circundando uma missa em plena celebração... e na saída colocar uma moeda de dois euros na máquina tipo caça- níqueis, que em troca me presenteou com uma medalha do Sagrado Coração de Jesus em metal dourado...( Me pareceu ver Jesus, com um chicote na mão, ameaçando os abusados capitalistas... A indústria do turismo francês é muito rentável para que se coloque limites aos turistas).

Como sonhei com o Louvre! E em filas quilométricas me exasperei e como um cordeirinho obediente segui a multidão até uma Mona Lisa protegida por camadas de vidro, Vênus de Milus e obras de arte inúmeras. Sem glamour nenhum fotografei o que quis, me espremendo na multidão.

Notre Dame ficou inviável. A fila contornava a praça e descia pela rua apinhada de gente. Com fome encontramos uma espécie de sanduíche com um pão francês de quinta e um jámon (presunto) duro e seco. Uma coca zero a 3.80 euros fez descer essa iguaria.

Para mim, Paris foi um susto. Uma sucessão de metrôs e ônibus lotados. Taxistas mal- educados. Uma canção dissonante. Durante seis dias tentamos nos entender com uma população desinteressada, dotada de um estranho comportamento: pessoas que te empurravam nas ruas sem nem mesmo pedir “pardon”, a estar sempre a te colocar no “seu devido lugar”, te deixando a esperar por um longo tempo ou te lançando um indelicado olhar de reprovação.

É verdade que tivemos mais sorte na Espanha: Madrid, Granada e Barcelona se mostraram amigáveis e até mesmo acolhedoras. O frenesi de Madrid, de tão intenso, contagiava, e caminhamos como loucas por três longos dias, sob o sol de quarenta graus, que só se punha por volta das 22.30 horas. O museu del Prado, a Puerta del Sol com sua multidão díspare, frénetica e apressada, valeram o calor e cansaço.

Granada foi uma surpresa boa, apesar de escaldante. No hotel o ar condicionado não funcionava. A água escorria do banheiro para o quanto como um rio. Milhares de degraus e nenhum elevador nos esperavam a cada volta. Mas houveram momentos mágicos no bairro judeu. Um chá marroquino maravilhoso, seguido de narguilé em um ambiente oriental lindíssimo. O castelo de Alhambra, esplendoroso e cheio de mistério. Os bares de “tapas”_ tiragostos, que acompanham canecas lindas de cerveja geladissima. As compras bem em conta. Os menus fartos de paellas e frutos do mar. Senões foram as faltas de carregadores para as malas. Falta de ar condicionado e de frigobar no quarto.

Barcelona foi um sucesso de bilheteria. Adoramos a comida, os castelos, o porto e a praia. A Vila Olimpica e a memória das olimpíadas celebradas. O hotel que era um mausoléu com seus brocados e rococós... Era feriado. Estava quente demais, mas tomamos “cavas”( um vinho espumante magnífico) gelada e contamos com algumas parcerias significativas... uma amiga conterrânea que foi guia, um garçon simpatississimo e engraçado, uma localização previlegiada. Ninguém teve culpa se assistimos a um assalto de motociclistas a uma desavisada mulher que foi arrastada pela bolsa, calçada a fora. Nem se perdemos os cupons das malas que ficaram no bagageiro do aeroporto e quase perdemos o voo. Coisas da vida. De viagem. De inexperiência.

Portugal? Uma sucessão de praças, monumentos e ruas iguais. Quem viu um, viu todos. Mas o bacalhau coloriu as refeições em pratos formidáveis. A gentileza incomum na Europa ainda reinava lá e o calor não estava insuportável. Vilas e povoados interessantes como Sintra se apresentaram com seus castelos e ruelas pitorescos. Chuva até. O comboio, trem português, nos conduziu a muitos lugares bonitos. Nada demais, nem de menos. Fátima foi descortinada em um dia, com sua basílica imensa e o turismo religioso produzindo compras de medalhas, imagens, tercinhos e coisas assim. Muito bom porque fomos de táxi com alguém simpático e gentil. Um achado. Brasileiro, naturalmente.

A Itália foi um filme de terror, no mínimo. Entremeado com algum charme. De cara um taxista malandro roubou uma preciosa mala e seu conteúdo. O hotel, um horror reservado pela internet, tipo albergue, onde cada um lavava a propria louça por 40 euros ao dia, um elevador que faria jus ao Stephen King e um mundo de regras sem cabimento, como estar fora das 11 as 14 horas, obrigatoriamente. Fomos roubados pelos taxistas, comerciantes, garçons. Os italianos me pareceram grosseiros, atrevidos, pernósticos e insuportáveis. A Itália passou pelos meus olhos como que através das janelas dos trens _ paisagens soltas, calor, falta de informações, poucos contatos humanos. Vi o coliseu com uma má vontade que o tornou banal. Fomos a Assis e a cidade me pareceu medíocre e calorenta. Não pude entrar nas basílicas pelos meus trajes "impróprios"; o trem foi um pesadelo porque as portas não abriram sozinhas, a passagem estava trocada e foi cobrada com multa, e a cobradora era uma espécie de Mussolini mal humorada. Não saber o idioma, outro problema meio insolúvel, visto que a má vontade imperava em toda parte.

Veneza. Como sonhei com Veneza... Mas a realidade me apresentou gôndolas decoradas de veludo vermelho, que luziam ao sol insuportável de julho. Turistas lotavam todos os bares e restaurantes. Problemas com a bagagem, um hotel do outro lado da ponte que não tínhamos como atravessar e uma angústia crescente, nascida do medo que todo o panorama desencadeava. Tivemos ótimos momentos também. Uma loja de máscaras fantástica e seu proprietário, um charmoso arquiteto. Compras de preciosidades em vidro murano, bem em conta. Uma beleza arquitetônica rara, quando vista com olhos mais descansados e atentos. Mas havia cansaço, calor, excesso de gente, vendedores incompetentes e confusos. E um desejo enorme de voltar pra casa, para o Brasil brasileiro tão acolhedor e belo e confortável.

Claro que minha visão é parcial.

É a minha, a de uma turista acidental que acalentou sonhos mirabolantes e planejou mal as férias.

De quem não queria gastar demais, nem podia.

De quem vê a tudo com olhos críticos e atentos, sem dó nem piedade de sí nem de nada.

De quem carregou malas pesadas, cujas rodinhas se quebraram, por vários lugares, lutando com o peso e o desconforto. E pagou caro pelo excesso de uma bagagem inviável e inútil. E se viu correndo mais do que esperava, num roteiro difícil, de tão cheio. E escolheu erradamente a alta temporada com seus turistas todos e seu verão insuportavelmente quente.

Imprevistos.

Amadorismo.

Inexperiência.
.....................................................

Eu faria tudo diferente agora.

Eu faria tudo ao avesso.

E seguiria um roteiro profissional, uma excursão talvez, com suas diretrizes e guias e alguém que quebrasse todos os galhos e resolvesse todos os problemas. Vejam que estivemos por nossa própria conta. Muitas vezes sem saber o idioma, conhecer os costumes. Sem imaginar o que nos aguardava.

Penso que fomos heroínas, as quatro mosqueteiras que se aventuraram numa viagem para conhecer os lugares “por dentro” e não receber as informações de “mãos beijadas” dos guias das excursões... Que fomos incriveis. Que fomos mágicas. E muito, muito corajosas.

E que, apesar de não ter bula nem manuais, usamos bem o que foi possível dos lugares onde passamos.

Ano que vem talvez a gente volte.

Não, ano que vem a gente volta, já está agendado.

Bem mais light... bem mais conscientes...

Em circunstâncias muito, muito outras.

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

AMOR E SEPARAÇÃO

Ontem, mexendo no YouTube, vi um vídeo com uma palestra do psicanalista Flavio Gikovate. O tema POR QUE OS AMANTES SE SEPARAM? foi desenvolvido com tanta propriedade, tanta maestria, que desejei ver novamente agora. Resultado: Sumiu, não está mais lá… Sei que devia ter pego o link, ou algo assim, mas não me ocorreu fazer isso. Pensei que ele estaria à mão, sempre que eu quisesse rever. E agora?
Agora estou aqui, pensando nas palavras que ouvia… e que tentarei passar para o papel em forma de texto, porque a abordagem é totalmente nova e instigante. Gostaria muito de poder expressar, ao menos, a idéia geral do que o video me mostrou.
Por que os amantes se separam? Amantes aqui, com a conotação que usualmente dão ao termo_ aquele que ama alguém indisponível , casado com outra pessoa. Ou aquele casado indisponível que ama outro..._ no sentido meio pejorativo…amor proibido, escondido, uma forma de amor diferente, porque ao entrar em um relacionamento condenado a acabar, por força das circunstâncias externas, o amante entrega muito de si, faz uma espécie de investimento a curto prazo, onde o melhor é empregado. Logicamente o amante, em sua vida conjugal, já vinha arrastando um relacionamento de péssima qualidade (ou ele não se tornaria amante e apaixonado por outro) e ao encontrar o amor, sua entrega ( que ele crê, provisória, sem futuro) se reveste com as cores densas da paixão e ele pode enfim viver com toda plenitude uma relação rica, plena de afinidades, carinho, sexo, companhia verdadeira.
Mas para todos esses amantes, mais cedo ou mais tarde, a separação chega, Cada um vai para o seu lado, sentindo uma dor tão forte quanto a morte_ a morte de ter morrido para o amado_ tentando se adaptar melhor ao próprio casamento, mesmo que este se torne cada vez mais difícil e impróprio, depois da vivência do amor verdadeiro.
Na verdade há vários estudos que provam que todos os grandes amores secretos terminam em separação. A causa, diziam todos os estudos sociológicos e psicológicos feitos, eram os fatores externos… a sociedade não aceitaria… o cônjuge era responsabilidade sua… os filhos… os amigos do casal… os bens… No entanto, modernamente, várias teses comprovaram a imprecisão dessa afirmativa. Ainda que os fatores externos não contassem pontos, que a sociedade não mais punisse os separados, que o cônjuge não se mostrasse tão avesso à separação, ainda assim os amantes continuavam deixando seus amores e voltando para casa, para esposas e maridos mal humorada e distante, para sua vida muitas vezes melancólica por causa da renúncia voluntária e aparentemente imprescindível.
Quantos e quantos apaixonados renunciam ao seu amor em nome dos bons costumes e das convenções sociais? Abrem mão da melhor forma de vida conhecida_ aquela em que as coisas e circunstâncias passam a valer a pena, porque estão finalmente recebendo o amor, a paz e o aconchego pelo qual todo ser humano busca sem cessar… deixar de ser uma metade, para ser um inteiro, com possibilidades infinitas de crescimento pessoal, emocional, espiritual…_ para retornar a um lar onde arrastará para sempre sua história de amor inacabada e triste, onde não conseguirá dar felicidade nem a si mesmo, nem ao cônjuge, nem aos filhos.
Por que os amantes se separam?
Por que?
A resposta está nos fatores internos, não nos externos.
A resposta está numa palavra : MEDO
Os amantes se separam por medo. Um medo enorme, inconsciente. Medo da felicidade, por exemplo. Quanto mais amor, mais cumplicidade, mais alegria, maior o medo . Medo de ser punido, de que um raio caia e dizime tudo, de que a felicidade não seja algo desse mundo e que portanto vai pagar o preço exorbitante por ser feliz. Medo.
Medo da perda, de ser expulso do paraíso por aquele que é o maior encantamento. Algo assim como ser parido do ventre amoroso e aconchegante da mãe para um mundo hostil e inóspito. Medo.
Medo de se perder, de perder a própria individualidade, de ser engolido pelo calor e desejo do outro. Ou do seu. Medo.
Faz sentido pra você?
Pra mim fez todo o sentido… comecei a entender certas reações e certas atitudes com uma clareza e um frescor absolutamente novos.
O casamento, diz o psicanalista, se estabelece no equilíbrio entre defeitos e qualidades… o ser humano imaturo escolhe para si alguém com qualidades que o atraiam, mas com defeitos que o afastem, para assim se assegurar de que não se perderá no amor do outro, nem se aniquilará nas teias do relacionamento. É uma escolha inconsciente pelo médio, o aceitável, o formal. Por isso tantos casamentos apenas se arrastam na mesmice… não foram feitos pra crescer, mas pra permanecer.
O amor que se encontra no descampado da paixão, onde a busca pelo completo, mas efêmero, se estabelece, forma então a verdadeira aliança entre corações e almas, porque não há o medo absurdo de se perder no outro, ao contrário, a porta de saída está sempre aberta aos amantes… sempre à vista, presente… é só sair, só se despedir e dizer – Sinto muito! _ e voltar pra casa.
Entendem a diferença? Ela está no medo também.
Assim, o casamento é o equilíbrio onde nada de mal pode acontecer, porque se estabeleceu as normas com uma pessoa previsível .
E o relacionamento com o amante é a entrega onde tudo pode acontecer, porque sendo o que se é e permitindo ao outro ser o que é, não se pode prever os resultados, nem mergulhar no mar sem riscos de se ser engolido para sempre.
Estamos falando de AMOR de primeira qualidade, amor verdadeiro, paixão intensa… É nessas circunstâncias que os amantes se separam mais rapidamente para viver uma vida em separado muito, muito triste e solitária.
Tem solução? Ou os que amam verdadeiramente vão sempre se separar e viver uma relação de quinta junto a alguém que apenas suporta? Ou que no melhor dos casos se torna um amigo, irmão?
Sim.
Sim, tem remédio.
Não é preciso que seja sempre assim. Os amantes não precisam se separar, quando o amor é grande e verdadeiro.
A pergunta é: _ Como se livrar de todos os medos: ser feliz, ser expulso do paraíso, perder a própria individualidade?
A resposta : Tendo consciência profunda desses medos, trabalhando com eles, trabalhando em sí mesmo para estabelecer antes uma conexão tão forte consigo mesmo, uma individualidade real e preparada, uma maturidade verdadeira. Lançar um olhar crítico para toda a situação e desvendar os véus que encombrem todas as atitudes que tomamos. Ter a coragem de dar nomes aos bois, ou seja, chamar de medo ao que é medo. Chamar de amor o que é amor. E chamar de conveniência o que é conveniência…
Acima de tudo saber do fundo da alma, que o ser humano só realiza suas melhores potencialidades quando investe na qualidade dos próprios relacionamentos. Quando troca o médio pelo melhor. Quando pode viver o melhor da vida ao lado de quem realmente é capaz de viver o melhor da vida ao seu lado.
Mas isso não é fácil.
Viver não é fácil.
Amar de corpo e alma não é nada fácil.
A escolha existe. Existem as duas opções.
Quem puder, que viva a melhor delas.

domingo, 8 de junho de 2008

O tempo e o enxoval

__ Nãooooo moço… eu não quero mesmo esses lençóis de linho. Nem mesmo esses de puro algodão com cento e oitenta fios. Nem cem fios eu quero... Quero mesmo aqueles alí, algodãozinho estampado, flores alaranjadas e amarelas sobre o fundo branco. Que se danem os fios. Não quero que durem, quero que enfeitem. E que me deixem feliz só por vê-los, colorindo minha cama.

__ Na verdade não desejo que minhas fronhas sobrevivam aos meus sonhos. À mim mesma (como dizem que copos de requeijão sobrevivem a muitos casamentos). Quem amaria as mesmas cores que eu? Quem passaria a ferro as lindas fronhas estampandas com florzinhas... e sentiria seu perfume doce do amaciante predileto e suspiraria feliz ao colocar a cabeça no travesseiro macio, vestido com o doce tecido da escolha própria?

__ Eu desejo mesmo as fronhas de algodãozinho com florinhas laranja. E os lençóis de malha amarelos. E daí se malha acaba logo? Eu também me acabo a cada dia. Você acaba. Todos se acabam e se deformam e espicham mais de um lado que do outro. Nossos elásticos também não são eternos, assim como nossos tecidos. Envelhecemos, moço. Não sabia? Envelhecemos e ficamos flácidos e moles, como essas toalhas ficarão. Pra que então investir em peças eternas? Duráveis? Caras? Se vamos sofrer todas as formas de desgaste, todo tipo de decadência física, por que desejar que nossos objetos sejam mais felizes e permaneçam onde nós próprios não permanecemos?

__ Ah, isso é bobagem moço. Acredite em mim. Taças de cristal se quebram facilmente... escorregam das mãos, esbarram nas bordas da pia. Tudo o que tem valor real é frágil, etéreo, delicado. Nós, os seres, somos assim delicados. Quebramos, nos espatifamos, viramos pequenos cacos encarquilhados caso nos empenhemos na sobrevida. Copos grosseiros de vidro não se perdem facilmente... Duralex, eternex, suplex.... Tem coisas que caem e permanecem, o que não é o nosso caso. Não quero ficar pra semente. Nem me indispor com as estatísticas. Quero viver exatamente o que a média indica. Nem muito mais nem muito menos. Não sou melhor nem pior que ninguém. Sou um ser. Uma pessoa que poderá chegar aos 70, 80, 90 se tiver muita sorte, mas que verá a degradação da carne acompanhada da manutenção do espirito. Como todos. Pobres velhos corpos com alma nova e fresca! Pobre invólucro depauperado com o mesmo conteúdo.

__ Me traga tudo o que não seja de confiança, sim? A marca desconhecida que anuncia toalhas de banho macias e felpudas por uma ninharia. É o que eu quero. Quero que as coisas acabem. Quero ter o prazer de ter que sair e comprar novas coisas, para substituir as velhas; não permitir que as toalhas felpudas riam de mim, lépidas e novinhas enquanto meu corpo se debruça à lei da gravidade. Quero toalhas verde-limão, laranja, cereja, pink, amarelo ouro. Lindas e baratas. E perecíveis como eu.

Quero jogos de cama em malha, para que criem bolinhas, façam-se buracos, esgarcem... como eu.

Quero que meu sofá seja substituível. Reformável, no máximo. Humildemente consciente do seu pouco valor. Como eu.

A tinta da parede tem que desbotar, perder o viço, ser lavável. Como eu também.

Minhas panelas devem amassar caso esbarradas. Devem perder as tampas. Ser emprestadas e não voltar mais. Não ter teflon. Não ser do “jogo”.

Que o piso seja só um piso e não uma jóia no chão. E que eu possa pisa-lo sem culpa e sem dó. E todos possam caminhar sobre ele. E que eu possa troca-lo quando quiser sem remorso.

__ Coisas, moço, são coisas.

Pessoas são pessoas.

Não confunda mais as duas coisas.

Olhe de novo para mim.

Olhe para a senhora que está escolhenco edredons.

Veja que queremos florescer como as plantas. E nos cercarmos de beleza, como a natureza. E nos permitirmos definhar, como os lírios do campo. Que nem tecem nem fiam, mas que tombam sobre suas hastes no momento certo, sem um ai, sem um pio ou uma queixa. Sem deixar pra trás uma herança enorme de enxovais eternos.

domingo, 1 de junho de 2008

Mil perdões em poucas linhas.

Se eu disser não você me perdoa? Sim? Por favor! Eu digo não. Não venha amanhã, nem depois, nem ligue nem mande e-mails. Talvez eu te procure nesse meio tempo, mas não me leve a sério. Me ignore, por favor. Finja que não percebeu minhas investidas. É que às vezes sou como uma criança com um brinquedo novo, ou um jogo que acabou de ganhar de presente _ quero testar todas as possibilidades, experimentar o controle remoto pra ver se funciona mesmo. Apertar a tecla vermelha e ver no que é que dá.

Perdão por isso. Está me entendendo? Eu peço perdão. Ajoelho se for preciso. Jamais ousaria magoar um inseto, quanto mais você, que eu considero de primeira linha. Um cara bacana, respeitado, cheio de charme. Discretamente elegante, fino, culto. Você de terno faz tremer qualquer passante, ainda mais se for mulher e tiver miolo mole, como eu. Nossa... Quando você fala de si, da sua vida, sua brilhante carreira eu tenho arrepios... Ouço atentamente seu monólogo, cujo tema é invariavelmente “Eu e eu e minhas circunstâncias”, suspiro aqui e alí, emito algumas interjeições, digo ohs e ahs e te fito com meu olhar mais inocente. Que performance! Shirley Temple ficaria rubra de inveja caso me visse. No entanto você acrescenta alguma frase nova à antiga história, aperta meu joelho, olha em torno para ver se realmente todos em volta também ouviram ( você fala alto, meu bem...) e se dá por satisfeito. Eu tomo outro gole da cerveja que ainda não esquentou, sorrio para você e te olho como se visse Deus em pessoa descer em uma nuvem. Você crê em mim... sempre crê em mim. E nesse momento eu sinto um remorso da peste me roer as cordas vocais e fico sem palavras diante da minha própria atuação. Não sei se me parabenizo ou me estapeio. Foi mal. Fui má. E seu sorriso cúmplice me coroa de espinhos a consciência pesada. Me perdoa? Sim? Por favor?

Me pergunto porque faço isso e nunca me respondo. Na verdade a resposta é ignorada. Sou uma ignorante dos meus hábitos mais inconsequentes e fúteis. Que de fúteis nao têm nada, porque no fundo tenho plena consciência de que alimento uma fraude: seu ego. Pobre ego seu, caso sonhasse a falsidade da minha aquiescência... Pobre ego que eu quebraria em dois ou esmigalharia em estilhaços com uma só palavra verdadeira...“ Imbecil”... palavra essa que, lógico, jamais direi para não te decepcionar com minha crítica mordaz, nem te desestruturar com a verdade mais óbvia. Claro que não faria isso. Nunca seria esse ser sincero a te sussurrar sua prolixidade, ou sua vaidade exacerbada, contar que suas histórias já caducaram de velhas... que o tom da sua voz incomoda e que você não é nem de longe tão carismático quanto pensa. Faço caras e bocas, te olho no olho com a pureza de um récem-nascido, digo um “incrível meu bem...” tão fantástico, que corro sempre o risco de acreditar no meu personagem catabúlico... Sou indigesta, mas você não sabe, sou difícil de enganar, mas quem adivinharia? Nem São Tomé correria o risco de me adicionar no seu msn. Ou Calabar me teria no seu orkut. Sou camuflada, falsa, fogo fátuo, maria-vai-com-as-outras, inconsequente...

Me perdoa? Perdoname? Pardon... Excuse me… Carregue para longe sua pasta de couro legítimo e seus óculos tão em moda. Porque nada está mais fora de moda que suas gravatas bizarras, seus amigos discursivos, sua mania de dizer “ sou o que sou”, como se isso fosse o máximo e não um incentivo a procurar ajuda terapêutica.

Desapareça do mapa antes que eu me vista de salvadora da pátria e caia de amores pelos seus desvelos, seus achaques todos, sua excentricidade que beira a esquizofrênia. Se eu te telefonar, desligue. Se eu te escrever, delete. Caso eu faça pior e buzine diante da sua porta, se faça de surdo, pegue mais uma skol no frezer e aumente o som da TV. Faça isso pro seu próprio bem. Pro meu próprio bem. Pro bem da cidade, da pátria, do universo... Ou não me responsabilizo pela paixão que você vai me dedicar, inutilmente. Ou pela dor que vou te causar, levianamente. Nem pelos estragos que posso fazer à minha alma imortal, diante da sua extrema e incorrigível chatice. Tenho dito.

segunda-feira, 12 de maio de 2008

ACONTECEU MESMO ONTEM…

Eu acho que não pensava em nada, naquele momento tão íntimo. Eu não levara para o banheiro nenhuma revista, nenhum livro ou palavras cruzadas, como era meu costume. Não ligara o rádio nem acendera a luz. Simplesmente estava lá, sentada no vaso sanitário, vazia de pensamentos e distrações. E olhava para o chão, acho, fixamente, porque foi naquele ponto que aconteceu o fato.

Quando eu dei por mim havia um rato me olhando. Meu olhar estava tão mergulhado no dele, que, por alguns instantes eu não entendi o que se passava. Houve algo assim como um “encontro”, uma conjunção, ou sei lá como devo chamar aquele breve momento em que meu olhar e o olhar do rato se cruzaram e vasculharam, cada qual, a alma do outro. Se eu dissesse que o compreendi e com ele me identifiquei não mentiria. Mas não vou dizer algo assim tão escabroso. Posso, no entanto jurar que sabia o que ele faria em seguida: bater em retirada rapidamente, dando-me as costas e ao banheiro e ir refugiar-se em um canto bem seguro. Foi o que ele fez.

Fiquei parada ainda por um tempo que não sei quantificar. Meu coração batia descompassadamente. O chão do banheiro, sem o rato. O instante, destituído do seu significativo acontecimento, me tomaram de súbito. Eu começei a tremer como se tivesse febre. Mas não era febre. Era o choque póstumo que se apossava de mim. Era um espanto. Um asco. E muito mais que tudo isso, um reconhecimento de que algo muito importante acabara de me acontecer.

Em outros tempos eu teria gritado ao ver o rato. Teria chamado meu marido, filhos, corrido atrás dele com um rodo, encurralado o pobre em algum canto e o teria matado sem remorso algum. No entanto eu continuei na mesma posição. Muda e atônita. Eu me conectara ao rato. Sim, era isto! Eu e ele nos conectáramos por alguns instante. Nos irmanáramos, misturando nossos sentidos e decisões. Eu não me espantaria se me dissessem que ele lera meus pensamentos... Porque de certa forma eu fora capaz de ler os pensamentos dele, um a um, e plasmara, estampados nos olhos que me fitavam surpresos, um mundo desconhecido feito de cantinhos escuros, restos de comida e passeios noturnos.

O encontro, além de me tirar o fôlego e reverter alguns conceitos, me causou um estranho processo de deslumbramento diante do insólito: percebi que a realidade me afrontaria muitas vezes ainda, caso eu me encontrasse desprevenida e aberta diante dela. Como me encontrei naquele momento diante do rato. Sem minhas defesas racionais, sem as distrações do cotidiano, meu olhar não estava dirigido a nenhum foco, meu corpo estava relaxado e eu estava livre de pensamentos obsessivos sobre coisas ridículas e fúteis. Então surgiu o rato e seu olhar doce e humanamente compreensivo. E surgiu em mim uma lucidez diante da minha postura rígida e meus focos óbvios. Da mesma maneira poderiam ter vindo presentes inéditos da natureza, tais como estrelas cadentes, vagalumes em bando, uma flor rara a se abrir de repente.
Ou um piscar cúmplice que indicasse concordância... uma palavra ao acaso, impensadamente rica, um sorriso espontâneo do velhinho que amola facas e que eu talvez não tenha visto por não ter estado presente no presente. Por não ter tido a mesma entrega descontraída diante de nada, nem a atenção relaxada e participante.

Sempre soube que não há acaso. Que nada se produz espontaneamente sem causa. Ser racional nunca me tornou cética, rígida ou segura de coisa alguma no mundo. Eu tinha orgulho disso e pensava que me bastava acreditar e me libertar de preconceitos, mas eu estava errada. Não havia mérito algum na minha intensa sensibilidade se eu estivesse olhando sempre fixamente para os mesmos pontos óbvios. Eu só veria um lado da questão, das pessoas, dos acontecimentos e das coisas. O lado que estivesse sob a réstea de luz. Tudo o mais permaneceria nas sombras. O segredo que o rato me sussurrou ao ouvido, aquilo que ele me transmitiu sem palavras, por telepatia foi muito mais rico que isso. Aprendi que o segredo é destituir-se de expectativas, simplesmente. Assim como o olhar do rato me alcançou, me virando pelo avesso existencialmente, assim também me alcançariam infinitas coisas, caso eu me permitisse estar no aqui-agora com a pureza do principiante que ensaia os primeiros passos.

segunda-feira, 5 de maio de 2008

EM CASA NO SÁBADO A NOITE

Outro sábado... outra noite... mais uma de tantas. Ligo a TV, pego um livro, o lap top, a taça de vinho, o queijo. Me instalo na mesa da sala, pronta para ser adulta, madura e enfrentar a situação onde me sinto absolutamente abandonada _ por Deus, pela vida, pelos amigos, pelos filhos e principalmente por todos aqueles amores que foram tão efêmeros que passaram sem ter sido sequer uma companhia real para noites assim.

Divorciadas existem aos montes, em cada canto do universo, do pais, da cidade. Mulheres que optaram por viver sozinhas, ou que tiveram que aceitar a escolha dos parceiros. Na verdade não faz a menor diferença. Os ex-maridos e ex-amantes estão invariavelmente nos restaurantes e bares nas noites de sábado, acompanhados de namoradas que podiam ser suas filhas, ou netas. Mas isso não vem ao caso... felizes deles que riem e comem e se contentam com o que têm. Nós, a maioria das mulheres, cientes da nossa feminina condição, somos bem mais exigentes... e bem mais preconceituosas. Afastamos com um aceno os pretendentes jovens demais, caso apareçam. Afastamos igualmente os chatos, os casados, os galinhas, os inconstantes, os mau-caráter ... e com isso lá se vão todas as possibilidades, uma a uma, pelo ralo. O que nos resta são os livros, os filmes, as taças de vinho e a sensação esquisita de estarmos jogando fora algo muito precioso_ os últimos vestígios da nossa juventude encantada, assim como as chances de nos apaixonarmos por um sorriso maravilhoso e um olhar ardente.

Minha cadela me olha com carinho. Estou sem paciência para carícias e não sorrio. Depois penso que ela só tem a mim... que por meu lado só tenho a ela, e a coloco no meu colo. Sou uma mulher madura e bem resolvida. Não devo me entregar ao desespero . Pelo menos não ainda. Talvez eu tenha alguns trunfos na manga... Hummmm, vejamos: Sempre há o Sérgio... posso ligar agora e com certeza ele estará aqui em quinze minutos. Vai falar e falar de si, como sempre, o mesmo chato a cada encontro. E vai querer me agarrar e seu beijo me dará enjôo de estômago. Não. Não absoluto ao Sérgio.

Posso chamar uma ou duas amigas para ver um filme e tomar um vinho... de novo. Como na semana passada, como na anterior. A mesma sensação de abandono duplo ou triplo... acabamos nos consolando uma à outra, dizendo que a vida é assim... que os homens não tem idéia do que estão perdendo ao não nos convidar para sair. Não. De novo não.

Visitar mamãe, levar um bolo, falar de bordados, empregadas e receitas? Assumir de vez minha incompetência em ser jovem, autosuficiente e moderna? Assinar meu atestado de desistência de todos os sonhos de amor, romance e sexo selvagem? Entregar de bandeja minha rendição: _Sim, você e todos tinham razão, querida. Meu lugar é mesmo na cozinha, em casa, nos afazeres domésticos e na vida regular. Fui uma sonhadora, uma boboca. Sou uma mulher acabada para o mundo. Devo recolher do varal minhas anáguas e voltar para os recessos do meu lar... _ NÃOOOOOO!!!!!!!

Posso pegar o carro e ir ao cinema, ao shopping, à sorveteria. Posso me sentar na primeria fila ou na última que , de qualquer forma, me sentirei sozinha. Como não estarei indo por um desejo real e legítimo, mas para preencher o tempo e a sensação de inadequação, de nada me valerá sair e fingir que estou me divertindo. Estarei representando a “Linda Mulher Divorciada e Liberada Que é Autosuficiente”. Quem estará interessado nessa minha representação? A quem eu impressionaria com o papel encantador de Mulher Maravilha e Solitária? Quantos olhos se voltariam à minha passagem, questionando minha aparência, minha performance, minha bolsa Victor Hugo?

Eu desfilaria com um sorriso falso e congelado nos lábios, porque naturalmente estaria me sentindo sozinha e abandonada como me sentia em casa. Eu olharia vitrines sem qualquer interesse, porque também teria a sensação de estar vazia e depredada, como se diante da TV. Eu tomaria um sundae de chocolate como quem se entrega a uma aventura extra conjugal... mas no fundo estaria me sentindo abandonada e esquecida como quando percorro os sites de relacionamentos da internet, em busca do meu Par Perfeito... Tudo igual. Tudo na mesma.

Uma viagem? Poderia ir pro Japão em três tempos, pro Egito, pra Indonésia, pro Marrocos... e minha solidão circunstancial me acompanharia como um cão ao seu dono... E ao chegar ao hotel de poucas ou muitas estrelas, meu sono demoraria a chegar, embrulhado que estaria nas abstrações de sempre e nas mesmas dúvidas: _ seria esse o meu destino final? Eu estaria acabada para os relacionamentos, para o amor, por um decreto-lei? Ou a mesma averbação que me instituiu o divórcio? Quem sabe meus quarenta e tantos pesassem mais do que imaginei, envoltos em papel pardo e amarrados em pedras que me conduziriam invariavelmente ao fundo do mar, do rio, ao fundo do poço, caso eu insistisse em ser feliz e me apaixonar e ser amada de novo?

Se eu me inscrevesse em um curso de culinária, de filosofia, de Gestão do Meio Ambiente ou computação estaria inventando atalhos para suportar a mesma dor. A solidão me bateria à porta com menos frequência, mas com igual intensidade. Aulas de dança de salão não me consolariam. Nem passar as manhãs na academia ou no cabelereiro, como tantas conhecidas.

De volta à minha noite de sábado, me sinto muito lúcida. Me coloco no meu lugar... o mesmo de tantas que como eu estão em casa nesse instante. Não tenho respostas. Nem soluções . Minha varinha de condão não funciona para casos assim, meu discernimento não é suficiente. Constato que preciso de terapia, algo a que me agarrar contra a impotência diante da falta de opções. Caso a culpa seja minha tentarei reverter o processo e me sentir muito feliz mesmo que passe todos os finais de semana da minha vida diante da TV ligada. Se houver o que fazer, desde que eu não precise me entupir de cerveja e circunstâncias falsas, tais como festas loucas, companhias desagradáveis, bares lotados, eu o farei. Desde que eu não precise me contentar com “passar o tempo”, ou fazer o que outros fazem só por fazer, sem entusiasmo nem paixão, eu também o farei para que meus sábados sejam ricos e aventureiramente agradáveis... caso contrário...

Talvez eu me adapte, talvez envelheça serenamente. Talvez eu compreenda, enfim, o valor da solidão que me assola. E já não me sinta desolada quando puder enxergar todo o quadro de um ponto distante, analiticamente, filosoficamente, psicologicamente. Talvez eu seja sábia, realmente amadurecida e esclarecida quando for outro dia, outro sábado, outra vez a mesma história da qual não tenho qualquer culpa, ou desculpa, ou participação. Na qual não tenho livre arbitrio, exceto o de cumprir regularmente a minha sina de divorciada e solitária à espera de que algo aconteça.

quarta-feira, 16 de abril de 2008

Amor líquido

Como o ciclo das águas
_ assim também o meu amor,
que se condensa
e chove sobre o meu desejo.

Meu amor se evapora
Formando nuvens sutis
E arabescos difusos.
Se esvai em partículas
E imagino que sumiu,
Tocado pelo vento.

Então meu amor me surpreende :
Penetrou no lençol freático
__ é subterrâneo e líquido
sob minha máscara.
É profundo, denso,
Ramificou-se, cresceu
Enquanto eu fingia cantar.

Vou e volto e faço coisas
E falo e calo,
Mas ele esta ali,
Aos meus cuidados.
Aflora a qualquer momento
Em cisterna, poço artesiano,
Vala,
Qualquer buraco,
Inundando meu coração.

A L I A N Ç A

Te amo. Desejo. Vem?
Pode ser que de coadjuvante eu passe a atriz principal e tenha um final feliz
Na tua história,
Com beijos, brindes e cenas tórridas de amor?
Pode ser?
Quem sabe, se sapos viram príncipes,
Se batatas viram fritas,
Se luar vira poesia,
Eu possa me transformar assim no objeto único do teu amor?
Quem sabe?
Nas noites sem estrelas sempre vislumbrei estrelas.
Nos desertos soube que havia lençóis subterrâneos
Onde a água era límpida e farta...
Na minha solidão eu te vi chegar,
Inteiro e absolutamente meu,
Pela porta da frente que deixei aberta.

Pode ser?
Se sonhei, imaginei, fantasiei ou soube,
Que diferença faz?
Eu sempre aguardei tua chegada
Como certa.
Coloquei o relógio para despertar às sete e meia
De uma quinta feira meio chuvosa.
Permaneci na cama, sabendo que o travesseiro que mantive ‘a esquerda teria enfim um dono,
Coloquei outra toalha no banheiro,
Fiz café, muito café e coloquei as xícaras na mesa.
Desocupei um lado do guarda-roupa,
Comprei uma escova de dente macia e azul, para não ferir tuas gengivas.

Ah. Pode ser?
Coloquei achas de lenha na lareira que não tenho,
Mas que queria ter para que te sentasses comigo diante dela nas tardes frias.
Fechei as janelas, deixei de fora o vento, os barulhos da rua,
Tua vida passada.
Pode ser?
Podes dançar comigo aquela música que tanto amo?
Assistes comigo ao filme de Almodóvar?
Tomas uma taça de vinho tinto?
Celebras comigo todos os Natais, aniversários e feriados atrasados,
Quando fomos deixados sozinhos um do outro?

Pode ser?
Nas manhãs de maio faremos longas caminhadas pelas ruas,
Nas manhas de dezembro buscaremos presentes para os amigos
Nas manhas de julho estaremos ‘a beira mar, bêbados de sol.
Nas manhas de agosto... Ah, não faremos nada, nada...
Aliás, faremos. Faremos amor, tanto amor até cansados dormir de novo.
Faremos uma festa pra nós dois, com muitas risadas.
Pode ser?
Nossas viagens serão eternas.
Eternamente lembradas porque deslumbrados escutaremos cada timbre dos sinos.
Nossas visões serão infinitas
Incrivelmente nítidas porque crentes veremos a luz oblíqua em cada nuvem.
Nosso tesouro será incalculável,
Porque trocaremos coisas que compram por coisas que são.

Pode ser?
Aceita esta aliança, não de ouro e diamantes,
Mas de uma liga rara de unidade e sonho?
Aceita receber no invólucro de seda minha vida inteira
E retribuir com tua inteira vida?
Sim? É possível?
Nada poderá deter os ponteiros do tempo, ainda que o relógio esteja momentaneamente invisível.
Ninguém tirará teu amor, se ele for meu por direito divino.
Ninguém te afastará do teu caminho, que é o meu caminho,
Se este já tiver sido traçado.
Longe,
No alto,
No infinito azul da Sagrada Vontade.
Amém, meu amor.

quinta-feira, 27 de março de 2008

A amante

Me pergunto por que preciso dele. Para me revelar, para ser eu mesma? Para me exprimir, conseguindo assim uma fusão, um grau de intimidade que necessito para me sentir realizada? Por que necessito da fusão com outro ser para me realizar? Porque me sinto sozinha, me falta um pedaço, falta uma parte minha que ficou perdida em algum lugar da minha infância e da qual tenho nostalgia. Sinto necessidade de parte de mim, a que não adquiriu consistência, e é essa parte que o outro representa. Preciso conquistar o outro, convencê-lo a fazer parte de mim_ ele significa admiraçao, troca, intimidade, carinho, sensualidade, partilha, companhia. O outro sou eu. É a metade de mim que falta. Ele é doce, envolvente, caloroso, macio , aconchegante. Eu preciso do abraço do outro para ficar feliz. Um abraço apertado, quente, gostoso.

Qual o pedaço que me falta? O que me faltou na infância? Faltou quem me visse, quem me olhasse nos olhos, me tocasse e me dissesse que eu era boa, querida, linda. Me faltou quem me amasse. Meus pais não me amaram. Eles não cuidaram de minhas necessidades de afeto. Um dia, criança bem pequena, vi minha mãe lá, mal arrumada, chorando. A humilhaçào daquela cena de cobrança e desapontamento que ela fazia diante do meu pai, entre atônito e impotente, se cristalizou em mim de tal forma que quis me refazer para nunca ser humilhada daquela maneira. Ser humilhada significava para mim ser relegada, esquecida, preterida. Ainda hoje me humilha o fato de me ignorarem. A maneira descuidada como ele me trata me desvaloriza. No entanto, saio em busca de viver essa situação e cada pequeno gesto de afeto é uma pequena vitória.

A menininha chorona recebe atenção quando se mostra sensível, inteligente, bonita. Então essa pequena vai à arena enfrentar seus leões, munida de suas melhores roupas e intenções. Ela se coloca diante da rival que não lhe chega aos pés. O olhar dele a deixa feliz e a alimenta, assim como a desatenção dele pela rival. Placar: 0 x 0, 1 x 0, 2 x 0 para mim... fico feliz. Se acontece de haver o inverso e a atenção dele se voltar pra ela, se for 1 x 0 pra ela, dou birra, ameaço ir embora pra sempre, terminar tudo. A menininha não pode suportar falta de atenção...

Um dia deixei de competir com minha rival. Por que? Porque estava fácil demais ou porque me feria o fato de que, apesar dos olhos dele estarem sempre voltados pra mim, eu senti que assim era porque ela, a rival, consentia? Ela saia de cena para que eu brilhasse, estrela cintilante. Ela talvez não precisasse competir, talvez estivesse muito segura do amor e necessidade dele. Me incomodava o fato de conversarem longamente, se telefonarem, se tratarem cordialmente. Não, ela não o merecia. Eu era melhor: mais bonita, inteligente, culta, mais rica e mais companheira, mais sexy. No entanto ela o possuía, não eu. Era desgastante ser a boa e bela amante todos os dias e, assim que acabasse a cena, as luzes se apagassem, eu deixasse de existir e ele voltasse pra ela. Voltasse pra casa.

Entende?

Era preciso ser melhor, competir, ganhar da concorrente. Daí ela sairia de cena, rabinho entre as pernas, e eu ganharia o prêmio.

Mas não aconteceu assim.

Tive um excelente desempenho, mas ele sempre me deixava ao final, correndo pra ela. Dizia que me adorava, mas corria pra ela. Eu era a melhor, mais tudo de tudo, mas corria pra ela.

Ele alimentava meu ego por algum tempo e depois me relegava ao esquecimento. Assim alimentou minha dependência. Eu queria mais e mais daqueles holofotes fixos em mim, nunca ninguém antes me olhara assim... e quando eu pensava que já tinha tudo, que ele me olharia para sempre, ele sumia, apagando as luzes do palco.

Era desesperador não ter platéia! Quem estaria interessado na minha representação mais verdadeira? Quem me amaria o bastante a ponto de querer ver-me reprensentar a mim mesma, com todas as minhas carências, lágrimas, ciúmes, estratagemas infantis? Veja, só houve alguém que viu essa peça, por isso desejo que ele não saia jamais da platéia... necessito que me aplauda... que me parabenize... que me ame.

Viver passou a ser representar só pra ele. Virou um vício, uma necessidade e a cada vez que ele se ausentava eu parava de viver um pouco.

Me pergunto por que ele precisa de mim... Para ser ele mesmo? Para descansar da máscara por algum tempo, relaxando assim seus músculos distendidos, as atitudes distendidas, os pensamentos distendidos...

Assim como ele me olhou e me viu por trás da minha máscara de eficiência, assim também eu o olhei e o ví por trás da sua, de escrúpulos falsos. Éramos duas fraudes _ eu, a menininha solitária precisando de atenção, carinho e cuidados. Ele era o menino indócil a a quem tentaram moldar à força. Ambos nos rebelávamos fingindo-nos de adultos. Mas eu ainda dava birra e ele expunha sua exigência nada cristã. Eu queria, precisava ser dominada, pertencer a alguém. Ele precisava usar, abusar, possuir e dominar para existir.

Foi uma simbiose à qual chamei amor. Foi um fogo. Eu me vestia de forte e auto suficiente. Ele se vestia de fraco e dependente. No fim eu não era forte, nem ele dependente. Tentávamos não submergir, não nos afogarmos de vez nos nossos papéis quando nos conhecemos. Nos agarramos um ao outro como se fossemos táboas de salvação. Viciamos um no outro. Viciamos na companhia, no sexo, nos defeitos mais graves.

Ele era basicamente desenfreado. Eu, basicamente aventureira. Juntos transgredimos muitas regras, fomos mais que cúmplices, mais que loucos. Usufruimos de todos os espaços.

Mas acontece que ele só foi meu em um dos roteiros. Quando colocava a máscara eu deixava de existir. E nessas horas eu morria. Me desesperava. Ele corria pra casa, pra minha adversária com toda naturalidade. Me beijava e dizia até breve.

E para parar de morrer eu morri pra ele. Renunciei. E para não me desesperar mais eu me anestesiei. E coloquei um ponto final na história que contei.

terça-feira, 18 de março de 2008

TEMPO DE MORANGOS












_ Tira a mão daí! Larga esta batata! É pro almoço. _ E a deliciosa batata frita esfriava no fogão, enquanto o arroz, o feijão e o bife ficavam prontos... Quando ia pra mesa, estava murcha, chocha e a mãe queria que ele comesse: _ batata faz bem pra saúde... Puro carboidrato, amido... E ele mastigava tristemente o amido, a saúde, não o sabor delicioso da batata quentinha quando sai do fogo.

Nos aniversários se sentavam todos em volta da mesa a enrolar brigadeiros. Ai de quem comesse unzinho só. Eram pra festa. E na hora da festa convidados esfomeados enchiam os bolsos com os desejados brigadeiros. Para as crianças da casa não sobrara nenhum.

As melhores roupas eram para os domingos quando não viam nenhum amigo, nem a garota da escola que queriam impressionar. Como se elas fossem se gastar, se consumir, eram usadas e guardadas para as ocasiões especiais... Ora, ocasiões especiais são as do dia-a-dia. Como saber quando surgirá uma ocasião especial? Quando poderá acontecer da garota mais bonita sorrir pra você e você se sentir assim, bonito e bem arrumado, só domingo? Só feriado?

A mãe, ocupada com a casa, o pai, ocupado com o jornal, seus particulares pensamentos. E o menino vaga entre um e outro, tentando chamar a atenção, inutilmente. Que perda! Os pobres pais, se soubessem aproveitar esses momentos únicos de afeto e intimidade ao invés de passar novamente a vassoura na casa já limpa. Ou ler as mesmas fatigantes más noticia. Ou fazer o que quer que seja sem incluir o amor do menino e os seus grandes olhos tristes. Anos mais tarde, quando ele adolescer, juvenescer, adultecer; quando casado ou formado for pra bem longe, um lugar inacessível qualquer, sem volta para casa, quantas lágrimas de saudades inúteis_ melhor terem aproveitado o tempo da fruta quando era o tempo da fruta. Inútil pedir morango no inverno...

A triste lição do adiamento da felicidade para quando a felicidade não for mais possível: guardar o bolo de aniversário para depois do almoço e depois do almoço ele já estar azedo. Deixar o bife secar na frigideira porque o pai não chegou ainda e quando ele chega já é tarde demais pro bife. Deixar a vida transcorrer sem buscar o melhor dela, e ao querer abraçá-la ela ter se esvaído no ralo da velhice, do cansaço, da doença. A herança que a tia vai dividir fica pra depois. Jovens não sabem gastar. E quando a herança vem, os jovens se fizeram velhos e já nem sabem como gastar...

Quanto desperdício da beleza da vida! Quanto adiamento desnecessário! Dá licença? Peço permissão para enfiar a mão na panela e comer a batata frita ainda quente. No almoço não a quero. Mais tarde não a quero. Quero agora. O tempo é agora. Deixe-me usar minha melhor roupa às 7 horas da manhã de quinta feira, se sujar eu lavo, se estragar, paciência. Comer a sobremesa enquanto não tenho diabetes, com bastante calda, cobertura, creme. Amar enquanto meu coração bate acelerado, mesmo que a pessoa não seja conveniente. Dormir enquanto dormir é um prazer e não tenho insônia. Gastar meu dinheiro, meu tempo, minha energia enquanto respondo ao chamado dentro de mim que diz _ Viva!

Que nunca seja tarde demais. Nem pra mim, nem pra você.

segunda-feira, 17 de março de 2008

Aprendendo a trair

Pode ser que sob certos aspectos, pareça certo. Penso que não.

Traição é traição, ainda que tenha outras dezenas de nomes, tais comonovas experiências”, “estava me sentindo só”, “a atração foi demais, não deu para segurar” ou “meu casamento já acabou”, etc, etc, etc. Ainda que tudo isso seja verdade e ninguém faça o outro sofrer de propósito, no fim o que sobra é uma imensa culpa.

Ninguém foi mais fiel que eu por quinze longos anos. Eu era tão, mas tão fiel, que Janaina nunca sentiu o menor ciúmes na vida. Era o que chamava “cara chato”: do trabalho para casa, da casa para o trabalho, finais de semana com a família. Invariavelmente. Talvez eu tenha sido maçante demais, certinho demais, mas fui educado assim_ minha mãe dizia que um chefe de família devia se dar ao respeito. Casou, acabou. Nunca mais longos olhares para as garotas de saias curtas, nada de pequenos flertes com colegas de trabalho e vizinhas bonitas. A vida de casado para mim era isso: um pátio murado onde eu sempre deveria estar, em pensamentos, palavras e atos.

Devo dizer também que eu devia ser mesmo chato e dependente, porque com o tempo desaprendi até de como escolher uma roupa para vestir: “Janaina, que roupa vou usar hoje?“, “Que camisa combina com esta calça?”,

Você comprou as meias que eu pedi?“... Parece ficção? Não é. Cheguei a esse ponto de incompetência perante minha vida, perante mim mesmo.

Quando foi que mudei? Por que mudei? Devo confessar que se dependesse de mim, nada estaria diferente agora. Eu não olhava para ninguém mais, não porque me sentisse obrigado a seguir as regras, mas porque não me interessava mesmo. Minha vida era minha mulher, meus dois filhos, minha mãe e minha casa. Tirando isto eu não era nada, não queria nada.

Posso estar enganado, mas acho que sinto ainda o perfume de Janaina naquela manha, há dois anos. Um perfume doce, pungente, desses que só deveriam vir em conta-gotas minúsculo, por serem capazes de inundar uma casa inteira. Ela estava saindo para levar um dos meninos na escola _ o que estudava de manhã _ e iria em seguida para a academia de ginástica, onde malhava, religiosamente há anos. Eu não disse nada. Por que diria? Nunca me meti nas preferências da minha mulher. Ela não aceitava que eu interferisse em sua escolha por roupas, sapatos e coisas assim. Janaina sempre trabalhara, comprava ela mesma todas as suas coisas e conquistara assim o direito irrevogável de usar o que bem quisesse. Apenas achei esquisito. Em algum canto do meu subconsciente aquele perfume ficou flutuando,`a espera de novas constatações.


Depois tudo ficou bem estranho no meu cotidiano _ Janaina ia e vinha. Janaina estava a cada dia mais bonita. Janaina não era mais a minha Janaina _ não tinha a menor paciência para com os meus desmazelos: “_Cê esqueceu a toalha no chão, bem!“, “Feche a gaveta, mô“, “Esta camisa não combina com você”, eram frases de um passado aparentemente remotíssimo. Tentei conversar, mas nunca fui páreo para ela: Só estava cansada de apanhar minhas coisas espalhadas pelo chão, chegava em casa e tinha que agüentar um segundo turno de trabalhos domésticos e chateação. Convincente, não? Verdadeiro? Só em parte. De noite, esperava que eu pegasse no sono para vir se deitar. Ficava ali, enrolando o tempo num livro qualquer, levava um copo com água para o quarto dos meninos. Ouvia música na sala, como se isto fosse um hábito. De manhã pulava da cama, lépida e sorridente, para mais um dia que lhe afigurava interessantíssimo, desde que eu não fizesse parte dele.

Como sempre acontece (só vim a saber disto muito depois), inventei uma nova vida em que eu me sentisse confortável. Nunca pensei em me separar de minha mulher, nunca soube de amantes, segredos, ou que ela tivesse uma conduta repreensível, em qualquer aspecto. Continuou firme do meu lado, fazendo de conta que tudo estava igual, que ainda existia um casamento ali, onde eu só enxergava um buraco. Também continuei firme, fazendo da rotina minha muleta e da minha casa meu castelo inatacável. Meu corpo estava sempre dentro desses aspectos de mim, presente e pontual a cada tarde, trazendo o pão mais quente e a serenidade mais estudada.

Com o tempo cansei de fingir. Janaina também. Não havia mais o que falar, mas também não havia o que calar. Passamos a nos tratar cordialmente demais, respeitosamente demais, como dois estranhos que tivessem participado de uma orgia que quisessem esquecer. Delicadamente, aos poucos, suas roupas foram sendo retiradas do nosso armário. Uma nova cama chegou ao quarto de hóspedes quando ela esteve gripada e não quis me contagiar, uma nova vida foi se construindo entre as mesmas paredes de sempre, mas que agora abrigavam outras expectativas.

Traição? Não sei se traí ou a quem traí. O que se tornou claro para mim foi que eu desenvolvera necessidades de aconchego e calor como nunca, que um simples toque de mão me faziam estremecer, assim como se eu tivesse passado tempo demais numa ilha desabitada e agora já não suportasse a solidão. Um olhar, uma palavra gentil, uma pequena atenção e eu literalmente saltitava, pleno de gratidão.

Traição? Quando me deitei pela primeira vez com outra mulher que não a minha e senti que o mundo não era aquele lugar sombrio e triste, chorei durante muitas horas, indiferente ao choque que causava na companheira eventual, indiferente ao que se chama culpa _ que, apesar de tudo, insistia em mostrar a cara envergonhada.

O rapaz da academia

Ouvi quando o chamaram de Cris, mas Cris é diminutivo de tantos nomes... Talvez ele se chame Cristiano, Cristóvão, Crisóstomo, ou até mesmo Cristo ou Cristino _ tive um vizinho com esse nome, mas o fato de o chamarem Cris é quase tudo o que sei do rapaz da academia.

Quer dizer, ele não é exatamente um rapaz, deve estar beirando os cinqüenta, mas ainda se encontra com aquele tipo de físico, que uma amiga minha classificaria como “comível”, “ comestível” , por mais grosseiro que isto pareça, posto no papel. Bom, mas Cris, o rapaz da academia que já não é um rapaz e é muito comestível, é também alguém com quem me encontro religiosamente às sete e meia de todas as manhãs, exceto aos domingos, sem nunca ter trocado sequer uma palavra ou um olhar.

Ouso mesmo dizer, que de todas as pessoas que já não me olharam
(e muitas não o fizeram...) , Cris foi quem melhor não me olhou.

O não-olhar de Cris é tão intenso, que quando ele se encontra na esteira ao meu lado, suando como eu, sou capaz de contar facilmente o número de vezes em que ele não me olha, atenta que fico ao reflexo no espelho de frente, onde fica duplicada sua grande indiferença.

Talvez seja desconfortável para alguns, serem assim ignorados pelo companheiro de tantas manhãs, mas a mim isto não incomoda. Quando estamos lado a lado, ou frente a frente, nosso absoluto ato de ignorar um ao outro, chega a ser amigável, cordial, quase cúmplice.

Há qualquer coisa de muito criteriosa na maneira com que ele não me olha: _ Existem os ares ausentes, distantes, em que ele parece levitar pelo Himalaia; os compenetrados, em que fica imerso nos próprios pensamentos; os absortos, quando contempla a luminária com sublime fervor; ares subitamente atentos, quando qualquer um que passe, exceto eu, é motivo de um giro completo de 90 graus do lindo pescoço musculoso. Um jeito displicente, outro alerta, alguns ares mais sutis e delicados, suavizam às vezes sua expressão como se ele visse os Jardins do Éden ao longe, ou se encontrasse em completo estado de Nirvana.

O cuidado e a atenção que requer um absoluto não-olhar é qualquer coisa de assombroso. Mais fácil carregar pedras ladeira acima do que não fitar jamais o que se encontra à sua frente, por isto acho o Cris um completo herói, um deus, um mágico.

Como em sua mão esquerda brilha uma grossa aliança de ouro, deduzo facilmente que o fato de ser um homem casado faz dele um não-olhante ativo. Pode ser que na sua mente, a fidelidade cintile nos tons dourados e preciosos do não-olhar ostensivo e estudado a todas as mulheres mais ou menos atraentes que estão a um perigoso raio < 5 m de distância.

Ah, como ele me emociona e intriga. Desejo assim conhecer e catalogar cada precioso momento que passo admirando a força hercúlea que Cris faz para observar o observante com requintes sutis de não olhar.__ Que homem !!!

Como respeito e aplaudo silenciosa e sinceramente esse colega... Pudesse eu lhe pediria um autógrafo em meu velho tênis Nike, ao que ele, pego de surpresa, talvez me encarasse pela primeira vez.

(04/04/2005)

sábado, 15 de março de 2008

PORTAS FECHADAS

Quando abri a porta da minha casa, meu coração batia descompassado. Uma dor difusa me apertava o peito e parecia que eu não respiraria se não puxasse o ar com força para dentro dos pulmões. O que me esperaria ?

Coloquei as chaves na mesinha, como de hábito e segui pelo corredor em direção ao meu quarto. A dor no meu peito agora era quase insuportável e eu tremia como se tivesse febre. Na porta do quarto ainda parei, segurando a maçaneta com as duas mãos, na esperança de que por alguma razão, eu fosse impedido de entrar. Quem me impediria? Nesse momento cheguei a pensar em voltar atrás, percorrer o caminho de volta, fazer muito barulho na sala, espantando assim os fantasmas. Pensei ainda em fingir que nada acontecera. Eu sairia, voltaria para o trabalho na Prefeitura, me sentaria à minha mesa, cercado pelos papéis e documentos que me eram familiares, conversaria com meus colegas e ate riria de alguma piada engraçada.

Pela minha cabeça se passaram tantas lembranças __ boas e más __ e também tantos sinais, mais ou menos evidentes, de que Luiza tinha um amante, que me senti meio tonto e nauseado, com uma enorme ressaca de vergonha e tristeza. E agora? Eu iria em frente, abrindo a porta dramaticamente e dizendo: __ Bem que eu desconfiava, sua vagabunda, prostituta, desclassificada!!! __ e vendo Luiza se assustar, querendo explicar o inexplicável? E pior, ouvi-la dizer que foi melhor assim, que não teria coragem de me deixar, mas já que eu sabia ... Ou ver no rosto do homem em minha cama, os sinais de medo, surpresa e, por que não, vitória?!

De repente eu tinha, não cinqüenta, mas oito anos de idade e novamente me colocava à porta do quarto de minha mãe, chorando e pedindo para dormir em sua cama. Tivera um pesadelo. Tremia de medo. __ Não! __ ela gritava __ seja homem! O fantasma da rejeição sempre rondando todas as portas de quartos da minha vida, o velho fantasma branco e gelado que não me deixava sentir o calor e o aconchego do amor. Por quanto tempo eu carregara a certeza de estar sempre do lado de fora, choramingando e implorando? Minha vida havia sido assim, uma certeza mais que absoluta de que um dia as portas se fechariam e eu não poderia mais entrar.

Com as duas mãos na maçaneta eu ainda não sabia se entrava ou não naquele quarto, o sagrado quarto de casal, que fora profanado desde não sei quando pelo desamor de minha esposa. Uma mulher a quem eu torturara com ciúmes incessantes durante os longos anos de um casamento monótono e frustrante. Quem sabe não fora eu quem a empurrara para o adultério com minhas desconfiancas, minha aridez e meu fantasma eternamente presente? Eu talvez abrisse a porta e expusesse Luiza totalmente, na sua nudez, traição e deslealdade, não fosse a dor que me apertava o peito como um alicate __ brutalmente__ como se naquele momento eu estivesse prestes a ter um enfarte.

quarta-feira, 12 de março de 2008

RECOMEÇO








Poderia jurar que jamais
Te encontraria em outros,
Todos tão pequenos,
Tão, tão tênues,
Como as linhas apagadas do desenho...

Poderia sofrer horrivelmente a tua falta,
Me atirar sobre tua sombra e berrar por teu amor,
Por teu corpo pulsante,
Teus passos ao meu lado.

Poderia sim.
Eu então te quebraria os ossos,
Os dentes,
As taças de cristal do armário,
Rogaria pragas,
Te apedrejaria,
Te arranharia a pele e o ego com palavras
Ultrajantes,
Inúteis gemidos,
Sim, eu poderia.

Mas hoje escolho outro caminho.
Escolho te enxergar, meu pequeno gnomo,
Meu algoz de papel.
Te ver em sua caricatura mais real,

E ignorando o intenso azul da tarde morna,
Eu fecho as cortinas e meus olhos,
E digo que já nada mais importa,
e brinco de fingir que tu morrestes.

terça-feira, 11 de março de 2008

A QUINTA ESTAÇÃO

Não são apenas quatro, as estações. Não em meu coração. E é reconfortante saber que foi e será sempre assim... Que há uma rotina para os corpos celestes, explicada pelos movimentos de rotação e translação. Representações, trajetos, regularidades na orientação espaço - tempo, o que foi possível muito antes da bússola, dos relógios e do calendário. Tempo cíclico de dia, mês e ano, e a idéia de tempo não cíclico: o tempo histórico, que comporta as idéias de passado, de registro, de memória e de presente, de mudanças essenciais e irreversíveis.

Namorei os corpos celestes também pela necessidade de aprender a registrar ciclos e me orientar no espaço. Os homens associam mudanças na vegetação, hábitos, épocas de chuvas com a configuração das estrelas ou com o trajeto do Sol. Com a elaboração do mapa dos céus e da Geometria, situa-se com maior precisão na Terra e no espaço cósmico.

Mas, apesar da conexão observada entre os ritmos e variações, nem tudo depende de fatores relacionados aos corpos celestes: emoções provocam transformações em razão da própria estrutura, da orientação do eixo e dos movimentos do sentimento. Foi assim criada a quinta estação.

Sim, não ouso dizer que te culpo ou a mim. Pensei que eu tinha tudo porque tinha teu sorriso a cada dia. Chovi, trovejei, esfriei, transportei grãos a celeiros imaginários quando acreditei que era pródiga. O significado dos ciclos não me passou despercebido porque sentia que tudo retornaria na quinta estação... Todo o calor, presenças, força, estariam de volta após o Inverno. Recriaríamos as cores outonais em tons de fúcsia, e inscreveríamos poemas desidratados nas águas correntes das enxurradas.

Assim como o dia sempre sucede à noite, sucederíamos às quatro estações com igual regularidade. Três meses? Que importa? Durasse o tempo necessário de criar raízes profundas, tão profundas que seriam capazes de esperar todo o ciclo. Era um sonho. Nunca existiu. Eu pensei que estaríamos juntos até sempre. Eu pensei que nossa conexão fosse eterna. Imaginei, nas minhas elucubrações, que seríamos um do outro na quinta estação, ainda que houvesse Primaveras e Verões de ausências e dor.

Eu não contava com a quebra do ciclo ou o fato de que as mesmas leis não regem os corpos celestes e os terrestres. Jurava que nossos corações estariam eternamente em conjunção, teus olhos nos meus, tua vida junto à minha vida. Agora que estás de partida revejo meus conceitos todos, minhas expectativas, meu caminho. Dói saber que nada é imutável, que o apego é uma leviandade da alma, que na verdade tudo muda, gira, foge ao controle, muda de órbita repentinamente... Teu amor foi como o caos que recriou minha solidão, uma constelação de estrelas cadentes, um cometa que passou. Mais nada.