segunda-feira, 17 de março de 2008

Aprendendo a trair

Pode ser que sob certos aspectos, pareça certo. Penso que não.

Traição é traição, ainda que tenha outras dezenas de nomes, tais comonovas experiências”, “estava me sentindo só”, “a atração foi demais, não deu para segurar” ou “meu casamento já acabou”, etc, etc, etc. Ainda que tudo isso seja verdade e ninguém faça o outro sofrer de propósito, no fim o que sobra é uma imensa culpa.

Ninguém foi mais fiel que eu por quinze longos anos. Eu era tão, mas tão fiel, que Janaina nunca sentiu o menor ciúmes na vida. Era o que chamava “cara chato”: do trabalho para casa, da casa para o trabalho, finais de semana com a família. Invariavelmente. Talvez eu tenha sido maçante demais, certinho demais, mas fui educado assim_ minha mãe dizia que um chefe de família devia se dar ao respeito. Casou, acabou. Nunca mais longos olhares para as garotas de saias curtas, nada de pequenos flertes com colegas de trabalho e vizinhas bonitas. A vida de casado para mim era isso: um pátio murado onde eu sempre deveria estar, em pensamentos, palavras e atos.

Devo dizer também que eu devia ser mesmo chato e dependente, porque com o tempo desaprendi até de como escolher uma roupa para vestir: “Janaina, que roupa vou usar hoje?“, “Que camisa combina com esta calça?”,

Você comprou as meias que eu pedi?“... Parece ficção? Não é. Cheguei a esse ponto de incompetência perante minha vida, perante mim mesmo.

Quando foi que mudei? Por que mudei? Devo confessar que se dependesse de mim, nada estaria diferente agora. Eu não olhava para ninguém mais, não porque me sentisse obrigado a seguir as regras, mas porque não me interessava mesmo. Minha vida era minha mulher, meus dois filhos, minha mãe e minha casa. Tirando isto eu não era nada, não queria nada.

Posso estar enganado, mas acho que sinto ainda o perfume de Janaina naquela manha, há dois anos. Um perfume doce, pungente, desses que só deveriam vir em conta-gotas minúsculo, por serem capazes de inundar uma casa inteira. Ela estava saindo para levar um dos meninos na escola _ o que estudava de manhã _ e iria em seguida para a academia de ginástica, onde malhava, religiosamente há anos. Eu não disse nada. Por que diria? Nunca me meti nas preferências da minha mulher. Ela não aceitava que eu interferisse em sua escolha por roupas, sapatos e coisas assim. Janaina sempre trabalhara, comprava ela mesma todas as suas coisas e conquistara assim o direito irrevogável de usar o que bem quisesse. Apenas achei esquisito. Em algum canto do meu subconsciente aquele perfume ficou flutuando,`a espera de novas constatações.


Depois tudo ficou bem estranho no meu cotidiano _ Janaina ia e vinha. Janaina estava a cada dia mais bonita. Janaina não era mais a minha Janaina _ não tinha a menor paciência para com os meus desmazelos: “_Cê esqueceu a toalha no chão, bem!“, “Feche a gaveta, mô“, “Esta camisa não combina com você”, eram frases de um passado aparentemente remotíssimo. Tentei conversar, mas nunca fui páreo para ela: Só estava cansada de apanhar minhas coisas espalhadas pelo chão, chegava em casa e tinha que agüentar um segundo turno de trabalhos domésticos e chateação. Convincente, não? Verdadeiro? Só em parte. De noite, esperava que eu pegasse no sono para vir se deitar. Ficava ali, enrolando o tempo num livro qualquer, levava um copo com água para o quarto dos meninos. Ouvia música na sala, como se isto fosse um hábito. De manhã pulava da cama, lépida e sorridente, para mais um dia que lhe afigurava interessantíssimo, desde que eu não fizesse parte dele.

Como sempre acontece (só vim a saber disto muito depois), inventei uma nova vida em que eu me sentisse confortável. Nunca pensei em me separar de minha mulher, nunca soube de amantes, segredos, ou que ela tivesse uma conduta repreensível, em qualquer aspecto. Continuou firme do meu lado, fazendo de conta que tudo estava igual, que ainda existia um casamento ali, onde eu só enxergava um buraco. Também continuei firme, fazendo da rotina minha muleta e da minha casa meu castelo inatacável. Meu corpo estava sempre dentro desses aspectos de mim, presente e pontual a cada tarde, trazendo o pão mais quente e a serenidade mais estudada.

Com o tempo cansei de fingir. Janaina também. Não havia mais o que falar, mas também não havia o que calar. Passamos a nos tratar cordialmente demais, respeitosamente demais, como dois estranhos que tivessem participado de uma orgia que quisessem esquecer. Delicadamente, aos poucos, suas roupas foram sendo retiradas do nosso armário. Uma nova cama chegou ao quarto de hóspedes quando ela esteve gripada e não quis me contagiar, uma nova vida foi se construindo entre as mesmas paredes de sempre, mas que agora abrigavam outras expectativas.

Traição? Não sei se traí ou a quem traí. O que se tornou claro para mim foi que eu desenvolvera necessidades de aconchego e calor como nunca, que um simples toque de mão me faziam estremecer, assim como se eu tivesse passado tempo demais numa ilha desabitada e agora já não suportasse a solidão. Um olhar, uma palavra gentil, uma pequena atenção e eu literalmente saltitava, pleno de gratidão.

Traição? Quando me deitei pela primeira vez com outra mulher que não a minha e senti que o mundo não era aquele lugar sombrio e triste, chorei durante muitas horas, indiferente ao choque que causava na companheira eventual, indiferente ao que se chama culpa _ que, apesar de tudo, insistia em mostrar a cara envergonhada.

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