Eu acho que não pensava em nada, naquele momento tão íntimo. Eu não levara para o banheiro nenhuma revista, nenhum livro ou palavras cruzadas, como era meu costume. Não ligara o rádio nem acendera a luz. Simplesmente estava lá, sentada no vaso sanitário, vazia de pensamentos e distrações. E olhava para o chão, acho, fixamente, porque foi naquele ponto que aconteceu o fato.
Quando eu dei por mim havia um rato me olhando. Meu olhar estava tão mergulhado no dele, que, por alguns instantes eu não entendi o que se passava. Houve algo assim como um “encontro”, uma conjunção, ou sei lá como devo chamar aquele breve momento em que meu olhar e o olhar do rato se cruzaram e vasculharam, cada qual, a alma do outro. Se eu dissesse que o compreendi e com ele me identifiquei não mentiria. Mas não vou dizer algo assim tão escabroso. Posso, no entanto jurar que sabia o que ele faria em seguida: bater em retirada rapidamente, dando-me as costas e ao banheiro e ir refugiar-se em um canto bem seguro. Foi o que ele fez.
Fiquei parada ainda por um tempo que não sei quantificar. Meu coração batia descompassadamente. O chão do banheiro, sem o rato. O instante, destituído do seu significativo acontecimento, me tomaram de súbito. Eu começei a tremer como se tivesse febre. Mas não era febre. Era o choque póstumo que se apossava de mim. Era um espanto. Um asco. E muito mais que tudo isso, um reconhecimento de que algo muito importante acabara de me acontecer.
Em outros tempos eu teria gritado ao ver o rato. Teria chamado meu marido, filhos, corrido atrás dele com um rodo, encurralado o pobre em algum canto e o teria matado sem remorso algum. No entanto eu continuei na mesma posição. Muda e atônita. Eu me conectara ao rato. Sim, era isto! Eu e ele nos conectáramos por alguns instante. Nos irmanáramos, misturando nossos sentidos e decisões. Eu não me espantaria se me dissessem que ele lera meus pensamentos... Porque de certa forma eu fora capaz de ler os pensamentos dele, um a um, e plasmara, estampados nos olhos que me fitavam surpresos, um mundo desconhecido feito de cantinhos escuros, restos de comida e passeios noturnos.
O encontro, além de me tirar o fôlego e reverter alguns conceitos, me causou um estranho processo de deslumbramento diante do insólito: percebi que a realidade me afrontaria muitas vezes ainda, caso eu me encontrasse desprevenida e aberta diante dela. Como me encontrei naquele momento diante do rato. Sem minhas defesas racionais, sem as distrações do cotidiano, meu olhar não estava dirigido a nenhum foco, meu corpo estava relaxado e eu estava livre de pensamentos obsessivos sobre coisas ridículas e fúteis. Então surgiu o rato e seu olhar doce e humanamente compreensivo. E surgiu em mim uma lucidez diante da minha postura rígida e meus focos óbvios. Da mesma maneira poderiam ter vindo presentes inéditos da natureza, tais como estrelas cadentes, vagalumes em bando, uma flor rara a se abrir de repente.
Ou um piscar cúmplice que indicasse concordância... uma palavra ao acaso, impensadamente rica, um sorriso espontâneo do velhinho que amola facas e que eu talvez não tenha visto por não ter estado presente no presente. Por não ter tido a mesma entrega descontraída diante de nada, nem a atenção relaxada e participante.
Sempre soube que não há acaso. Que nada se produz espontaneamente sem causa. Ser racional nunca me tornou cética, rígida ou segura de coisa alguma no mundo. Eu tinha orgulho disso e pensava que me bastava acreditar e me libertar de preconceitos, mas eu estava errada. Não havia mérito algum na minha intensa sensibilidade se eu estivesse olhando sempre fixamente para os mesmos pontos óbvios. Eu só veria um lado da questão, das pessoas, dos acontecimentos e das coisas. O lado que estivesse sob a réstea de luz. Tudo o mais permaneceria nas sombras. O segredo que o rato me sussurrou ao ouvido, aquilo que ele me transmitiu sem palavras, por telepatia foi muito mais rico que isso. Aprendi que o segredo é destituir-se de expectativas, simplesmente. Assim como o olhar do rato me alcançou, me virando pelo avesso existencialmente, assim também me alcançariam infinitas coisas, caso eu me permitisse estar no aqui-agora com a pureza do principiante que ensaia os primeiros passos.
segunda-feira, 12 de maio de 2008
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